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A INFLUÊNCIA DOS DESEQUILÍBRIOS DE PODER NAS ARBITRAGENS E MEDIAÇÕES INTERNACIONAIS: o Caso do Laudo Arbitral de Paris (1899)

  • Enzo Feital Ribeiro e Lara Mallet Bellotti Fins
  • Aug 26
  • 7 min read

O século XIX experienciou uma corrida armamentista europeia; um entrave para a paz e estabilidade internacionais. Nesse contexto, o Czar Nicolau II propôs uma conferência para “evitar calamidades que poderiam ameaçar o mundo inteiro” (Schofield, 2021). A Primeira Conferência da Paz de Haia (1899) buscou desenvolver mecanismos para a arbitragem e a mediação de conflitos interestatais, evitando guerras. Para atender essa demanda, foi acordada a criação do Tribunal Permanente de Arbitragem para lidar, pacificamente, com litígios interestatais – o que foi visto como um avanço para a manutenção da paz.

 

Na arbitragem interestatal, um tribunal deve se guiar por princípios orientadores que consolidam sua legitimidade e integridade, como a neutralidade, independência e imparcialidade dos árbitros, autonomia das partes e igualdade processual, ética e boa-fé no processo (Feehily, 2017). Entretanto, esse modelo pode não ser justo quando há desproporcionalidades no poder de barganha e negociação dos Estados. Um caso no qual observou-se que a desigualdade de forças dos reclamantes foi um fator chave em uma mediação, foi o litígio entre a República da Venezuela e a Inglaterra pelo controle de Essequibo, formalmente parte da Guiana Inglesa – à época, colônia inglesa. Assim, busca-se explorar como a assimetria de poder foi instrumentalizada na disputa por Essequibo no Laudo Arbitral de Paris de 1899, entre Venezuela e Grã-Bretanha. 

 

No século XVI, exploradores ingleses chegam à região do Rio Orinoco em busca de reservas de ouro (Stori, 2022). Entretanto, a expedição liderada por Walter Raleigh encontrou o território que corresponde à República Cooperativa da Guiana, como podemos observar no “The Discovery of Guiana” de 1596 (Bethell, 2024). A empreitada britânica feria seu tratado com a Espanha, que era a metrópole colonial dos territórios ao Norte da América do Sul. Dentre estes, estava a Venezuela que, em 1811, alcança a sua independência e busca estabelecer suas fronteiras.

 

As expedições britânicas realizadas na segunda metade do século XVI acabaram por não explorar o interior do território do Orinoco, que foi cedido ao Reino Unido pelo Tratado de Viena (1815) (Bethell, 2024). Esse cenário mudou em 1834 quando Robert Schomburgk foi enviado ao novo território britânico para firmar as fronteiras entre a Guiana Britânica e a Venezuela e o Brasil imperial. O resultado foi o estabelecimento da Schomburgk Line, que serviria como fronteira territorial entre a Venezuela e o território britânico, imposição nunca acatada pelo governo venezuelano.

 

Em 1844, a Venezuela afirma que os territórios a Oeste do Rio Essequibo eram propriedades coloniais espanholas e, assim, pertenciam à Venezuela independente (Bethell, 2024). Diversas tentativas foram feitas para resolver a questão mas, foi apenas no final dos anos 1880 que houve uma tentativa de resolução. A Venezuela era uma ex-colônia com menos de um século de existência, enquanto o Império Britânico era o hegemon, assim, se observava uma clara assimetria de poder, que seria determinante caso a Venezuela não buscasse apoio externo; é assim que os Estados Unidos (EUA) são convencidos pelos venezuelanos a apoiá-los. 

 

Durante o século XIX, os EUA promoviam a Doutrina Monroe, buscando manter a região longe de influências externas. Nesse sentido, apoiar um país que buscava enfraquecer a presença do Reino Unido na região era uma forma de consolidar a hegemonia estadunidense nas Américas. Assim, em 1885, a Câmara dos Representantes dos EUA votou a favor da arbitragem do caso Venezuela/Guiana Britânica sobre a questão fronteiriça (Bethell, 2024). Houve uma resistência britânica para aceitar essa arbitragem, por acharem que não havia nenhuma questão a ser resolvida em relação ao Essequibo, entretanto, após perceber que os Estados Unidos não deixariam suas pretensões de lado, o Reino Unido cede.

 

Em 1897, o Tratado de Washington para a arbitragem sobre as delimitações de fronteiras é assinado pelos EUA e a Grã-Bretanha, representando, respectivamente, a Venezuela e a Guiana Britânica. Um Tribunal Arbitral aconteceria em Paris e seria formado por dois juízes escolhidos pelos britânicos, dois juízes pelos EUA e o jurista e árbitro russo Friedrich Von Martens, que seria, também, o presidente do tribunal (Toma-García, 2023). A Venezuela não teve voz na decisão dos juízes, tendo sido impedida pela Grã-Bretanha de indicar um juíz venezuelano, enquanto os britânicos tinham três juízes favoráveis; estava formado um processo que desrespeita o princípio da imparcialidade ocasionado pela grande disparidade de poder entre os litigantes.

 

Em outubro de 1899, sai o Laudo Arbitral de Paris que, unanimemente, decidiu que o território de Essequibo pertencia à Guiana Britânica e que a sua fronteira seria a Schomburgk Line. A decisão dos árbitros foi acatada e a questão foi deixada de lado até 1949, quando surgem novos fatos.

 

Em 1944, o jurista estadunidense Severo Mallet-Prevost escreve um memorando sobre a arbitragem em torno de Essequibo, que é publicado após a sua morte, em 1949, argumentando que houve falhas e vícios arbitrais nas negociações que originaram o Laudo Arbitral de Paris. Os problemas apontados por Mallet-Prevost iam desde a escolha do presidente do Tribunal até os excessos do Laudo. Com essas denúncias, o governo venezuelano conseguiu se certificar das irregularidades, detalhadas pelo jurista que apontou “um conjunto de situações atípicas, de ajustes políticos e da execução de práticas afastadas da justiça por parte dos árbitros” (Toma-García, p.31, 2023).

 

Dois pesquisadores, Pablo Ojer e Hermann Gonzalez Oropeza, produziram o Informe que los expertos venezolanos para la cuestión de limites con Guayana Britanica presentan al Gobierno Nacional (Venezuela, 1967). O documento foi um marco na denúncia das fraudes referentes ao Laudo de Paris, mostrando irregularidades nos atos processuais que poderiam levar à sua anulação. A pesquisa mostra que a Grã-Bretanha utilizou seu poder imperial e o abismo entre as suas capacidades e as capacidades da Venezuela para garantir que o resultado da arbitragem fosse favorável aos interesses britânicos. A seguir, serão apresentadas as irregularidades encontradas.

 

Inicialmente, houve uma imposição abusiva na escolha e designação dos árbitros. O Reino Unido não aceitou que fosse designado um juíz venezuelano e ameaçou abandonar o Tribunal caso sua imposição não fosse acatada, o que fere o princípio do devido processo legal (Toma-García, 2023). Ademais, a escolha de Friedrich von Martens representou um ataque ao princípio da imparcialidade, já que ele possuía visões racistas e eurocêntricas, tendo afirmado que “O Direito Internacional não é aplicável a todo o gênero humano” (1981, p.90); esse direito era exclusivo dos países civilizados, categoria a qual, para ele, a Venezuela não pertencia. Assim, a Grã-Bretanha garante três árbitros favoráveis no seu processo de usurpação territorial. 

 

Ademais, observou-se um excesso de poder, traduzido pela expressão latina ultra petita, que se refere a casos nos quais a decisão judicial vai além do que foi pedido, violando o princípio de congruência. O Tratado de Washington de 1897 versava sobre a disputa territorial de Essequibo, em nenhum momento o Tratado abordou a questão da livre navegação dos rios Amaruco e Barima e, mesmo assim, essa questão esteve presente no Laudo de Paris. Em terceiro lugar, houve, por parte dos britânico, ocultação e adulteração de provas, principalmente em relação às versões apresentadas do que seria o primeiro mapa elaborado por Robert Schomburgk para apoiar a posição britânica; e o mapa original foi omitido.  

 

Em quarto lugar, a desigualdade de poder entre Grã-Bretanha e Venezuela foi instrumentalizada durante o processo de arbitragem. Segundo Ojer e Oropeza, os britânicos sempre usaram sua condição de potência para intimidação – que teve como vítima até os juízes americanos. Segundo o memorando de Mallet-Pervost, a mando do Reino Unido, o juíz von Martens ameaçou os juízes americanos a aderirem a proposta inglesa, que ainda cedia poucos territórios à Venezuela. Caso contrário, von Martens tomaria partido dos ingleses na sua máxima ocupação territorial, que dizia respeito à total ocupação e usurpação das desembocaduras do Rio Orinoco (Toma-García, 2023). Por fim, houve a falta de pronunciamento a respeito das razões que motivaram a sentença arbitral. No mesmo ano da arbitragem sobre Essequibo, foi organizada a Conferência de Paz de Haia, na qual os juristas defendiam a necessidade de explicar os fundamentos e princípios do Direito Internacional aplicados em um Laudo. Friedrich von Martens, com sua postura supremacista e hegemônica, era contrário.   

 

Em 1962, a Venezuela apresentou essas anomalias nas negociações que antecederam o Laudo de Paris para as Nações Unidas (ONU). O governo venezuelano argumentou que o Laudo deveria ser anulado pelos vícios de nulidade, acontecimento que recolocou a disputa por Essequibo em pauta – e que veria em 1966, com a independência da Guiana Britânica, o seu total reaquecimento pela mudança na correlação de forças. Quando a Guiana Britânica se torna independente, a Venezuela percebe que a disparidade de poder atingia um ponto de equilíbrio e possibilitaria uma resolução para essa controvérsia que não fosse tomada pela utilização da discrepância de forças.

 

O presente trabalho buscou mostrar como a arbitragem internacional pode ter seu resultado influenciado em litígios que apresentam grandes discrepâncias de poder entre as partes. Para tal, utilizou-se o caso da disputa por Essequibo entre Venezuela e Grã-Bretanha, que foi momentaneamente resolvido pelo Laudo Arbitral de Paris, para mostrar a instrumentalização do excedente de poder britânico para a garantia de um resultado favorável aos seus interesses. 

 

REFERÊNCIAS:

BETHELL, Leslie. 2024. “Notas sobre a história da disputa de fronteira Venezuela/Guiana”. CEBRI-Revista Ano 3, Número 9 (Jan-Mar): 165-175.

 

FEEHILY, Ronán. Neutrality, Independence and Impartiality in International Commercial Arbitration: A Fine Balance in the Quest for Arbitral Justice. Penn State Journal of Law & International Affairs, v. 7, n. 1, p. 88–113, fev. 2019. Acesso em: 13 de jun. 2025.

 

MARTENS, Federico. Rusia e Inglaterra en Asia Central. Traducción y Estudio Preliminar de Hector Gross Espiell. Ediciones de la Presidencia de la República, Caracas, 1981

 

SCHOFIELD, Garth. The Permanent Court of Arbitration: from 1899 to the present. In: LIM, C. L. (ed.). The Cambridge Companion to International Arbitration. Cambridge: Cambridge University Press, 2021. Cap. 16. p. 349-388.

 

STORI, Bruno. A lenda do Eldorado: transformações do mito doradista na cartografia da américa do sul. Epígrafe, [S.L.], v. 11, n. 1, p. 49-81, 17 ago. 2022. Universidade de São Paulo, Agência USP de Gestão da Informação Académica (AGUIA). http://dx.doi.org/10.11606/issn.2318-8855.v11i1p49-81.

 

TOMA-GARCÍA, Ricardo Salvador de. DO LAUDO ARBITRAL DE PARIS DE 1899 À CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA: transições nos processos adotados na questão do essequibo entre a república bolivariana da venezuela e a república cooperativa da guiana. 2023. 51 f. TCC (Graduação) - Curso de Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2023.

 

VENEZUELA. Ministério das Relações Exteriores. Informe que los expertos venezolanos para la cuestión de límites con Guayana Británica presentan al Gobierno Nacional. Hermann González Oropeza, S.J., Pablo Ojer Celigueta, S.J. 1967. Caracas.

 

 

 

Enzo Ribeiro é graduando em jornalismo na ECO/UFRJ. Atua como pesquisador na área de geopolítica dos recursos naturais, filiado ao Núcleo GIS/UFRJ.

 

Lara Mallet é graduanda em Relações Internacionais pela PUC-Rio. Atua como pesquisadora no PRIME Hub do BRICS Policy Center.

 
 
 

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